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  • Foto do escritorFauzy Araujo

A psicanálise e sua urgência tecnicista: entre avanços e bobagens


Quando o Dom Quixote de Cervantes se deu conta que precisaria lutar contra moinhos de vento, não precisou muito. Bastavam alguns equipamentos que seriam necessariamente bélicos e um fiel escudeiro. Para todo Dom Quixote há um Sancho Pança que não só segue seu “fidalgo de la mancha” como também legitima aquilo que, em sua percepção, sabia que não condizia com a realidade, mas que, todavia seguiu em uma briga que naquele contexto tinha lá o seu sentido.

Não importa se eram invasores ou moinhos de vento. Se era realidade ou delírio. O que está em questão é que ambos decidiram entrar em uma constante de brigas e esse era o objetivo da dupla. Ao menos tinham um objetivo. Decidiram em quais brigas iam entrar. Nem toda briga vale o esforço, outras sim.

Temos que saber em qual briga entramos e quais delas realmente condizem com o que nos compete. Enquanto psicanalistas precisamos entrar em algumas brigas e advogar por certas posições. Não é toda briga que é nossa e nem poderia ser assim, senão facilmente cairemos na ideia falsa de que podemos produzir cosmovisão referente ao mundo, à realidade e tudo aquilo que se passa nas mais diversas instâncias do cosmos. Decidir em qual briga entrar, quando se trata de psicanálise, é um posicionamento. Assim como não entrar em tais debates, também demarca uma posição social no que diz respeito ao papel do psicanalista na sociedade, principalmente no campo científico. O campo científico é, basicamente, o objeto de debate deste texto.

Recentemente foi lançado o livro "Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério" de Carlos Orsi e Natalia Pasternak. O livro coloca a psicanálise em um grupo das ditas pseudociências e práticas como a astrologia, paranormalidade, discos voadores, curas energéticas, etc. Não sei se a comparação é das mais justas, mas é a proposta.

Os autores fazem uma leitura da psicanálise baseada em pontos já anteriormente discutidos e evidentemente com visões que talvez até já tenham sido superadas. Apontam um posicionamento empirista e positivista, algo que qualquer leitura básica em epistemologia nos mostraria que são correntes aplicáveis, porém com seus problemas e pouca abertura para outras possibilidades de fazer ciência. Tratam do fazer científico de forma neutra e entendem que a pessoalidade do cientista não pode interferir no processo, uma questão que sugere que o cientista é isolado do mundo, da cultura, dos valores, das crenças, talvez até da própria natureza.

Evidentemente advogam pelas psicoterapias baseadas em evidências, uma conversa que talvez tenha tido mais repercussão na psicologia, já que tal proposta de pesquisa tem causado certo alvoroço nas teorias e práticas psicológicas que, em definitivo, não seguem tal parâmetro e consequentemente não seriam ciências. Se seguirmos essa lógica, temos que sustentar que não são práticas científicas, junto como seria a psicanálise: psicoterapias fenomenológico-existencial, psicologia analítica/junguiana, terapia centrada na pessoa, psicoterapia familiar e sistêmica e outras. Seguindo tal raciocínio, somente a terapia cognitivo-comportamental e o behaviorismo seriam propostas psicoterapêuticas confiáveis e científicas, uma ideia que não sei nem se os próprios behavioristas estão de acordo, já que todo bom leitor de Skinner, não compactua com o cognitivismo das TCCs.

A abordagem de conceitos como inconsciente, atos falhos, associação livre, sintoma e clínica, é feita como todo livro escrito para vender, não para produzir um debate que extrapola os velhos ranços das filosofias da ciência. Alguns dos conceitos e propostas clínicas citadas no livro, talvez até já tenham sidos problemas superados pelos próprios psicanalistas.

Até aqui, nenhuma novidade para nós. Costumamos brigar com os ditos cientistas a respeito da cientificidade da psicanálise. A questão da ciência é uma briga velha. É uma conversa antiga que muita gente teve antes de mim e que muitos depois enfrentarão. O problema é decidir se vamos realmente “descer para o play”, colocar as cartas na mesa e brigar de forma séria, ainda que alguns argumentos tenham o mesmo efeito dos moinhos. Tem brigas que valem a pena, mas só se a gente se garante nessa treta. Para se garantir nisso, precisamos mostrar o que há de potência nessa discussão, tendo a psicanálise como ponto de partida.

Por isso, a proposta desse texto não é responder ao livro supracitado, mas de uma proposta interna ao campo da psicanálise, longe de ser uma proposta isolada da comunidade científica em geral. Já tem muita gente debatendo se é científica ou não. Há gente que se colocou como isento e outros já fizeram o de sempre: o gesto Pôncio Pilatos de lavar as mãos.

Sugiro que isso antes de ser uma briga referente ao campo da ciência em geral, é uma briga interna à psicanálise e mais especificamente dos psicanalistas. A priori, precisamos tensionar essa questão no nosso meio, estabelecer uma discussão própria e avançar em termos de cientificidade. Todo campo científico deveria tender ao avanço e ter a honestidade intelectual de admitir seus fracassos quando necessário.

A psicanálise pode ser constantemente acusada de pseudociência e uma prática com pouco rigor, algo que seria mais como um efeito placebo e sem nenhuma consistência quando se trata do seu aparato teórico-conceitual e da sua técnica. Essas críticas costumam ser respondidas pela comunidade psicanalítica em duas possibilidades discursivas que são quase que jargões prontos. A primeira diz respeito ao fato de que a psicanálise não está interessada em ser uma ciência e a segunda, de uma forma quase que mística, coloca a psicanálise em um conjunto de conceitos mal articulados e realmente questionáveis, como no caso de alguns conceitos freudianos.

Aqui, poderíamos pensar isso para além dessas duas possibilidades que não ponho como dicotômicas, até porque não respondem a nenhum tipo de antagonismo entre ambas posições, pelo fato de que talvez elas não condizem com a realidade do que seria uma ciência e com os esforços de diversos autores da psicanálise em sustentar a psicanálise em um debate com o campo da ciência. Não as coloco como um antagonismo porque as duas posições são problemáticas e carecem de bases com maior consistência para manter um debate com o que é proposto do outro lado.

O além que aqui proponho, diz respeito ao que seria um tecnicismo no campo da psicanálise e de como isso tem dificultado que avanços necessários possam ocorrer e finalmente podermos sustentar um debate lógico e para além de propostas reducionistas referente ao que é uma ciência. No movimento contemporâneo, em termos de Giorgio Agamben, presenciamos um tecnicismo referente à psicanálise que se apresenta como uma das impossibilidades de levar adiante produções psicanalíticas que avancem no nosso campo e proponham um arcabouço bem estabelecido que sustente um debate entre ciência ou não ciência (ou pseudociência, se querem, mas eu particularmente prefiro o espírito cientifico de Bachelard).

O que chamo de tecnicismo aqui se refere ao movimento de tentar fazer da psicanálise uma pura técnica, onde nos livramos do obscurantismo de sua transmissão e finalmente podemos entender do que se trata e aplicar na clínica. Diz respeito a tomar teoria e técnica como linhas unidirecionais e que se trata de pura aplicabilidade. De entender conceitos e poder usá-los quando alguém chega para nós e fala de suas questões sobre a vida.

Particularmente me parece importante e lógico que as pessoas possam ler sobre psicanálise e sustentar o que leem em sua clínica. É importante que saibamos o que estamos fazendo clinicamente na condução dos nossos casos e devemos ter alguma propriedade, em algum nível, sobre a sustentação de uma prática pela via da teoria. A psicanálise não é uma experiência pura e particular e para isso, podemos adotar uma concepção que nos propõe Lacan: a de psicanálise como uma práxis.

Não se trata, absolutamente, de negar toda a importância disso. Já há quem deslegitime esse processo e claramente produzindo graves consequências para a psicanálise.

Se trata do problema de parar nesse ponto. Se trata de entender o conceito, aplicar e não ir além disso. Faz um curso aqui e outro ali, leem um artigo, veem um vídeo nos reels ou tiktok e seguimos.

Facilmente pode-se cair em um discurso mercadológico de aprender a praticar e ter sucesso profissional. Se resume às construções psicanalíticas em uma forma de produto que pode ser comercializado e, tal como qualquer objeto de consumo, pode ser esvaziado de uma possibilidade crítica ou ser substituído quando não tem mais serventia em seu uso. Tais propostas não têm nenhum compromisso referente aos avanços que precisamos, em diversos níveis, e que coloca a psicanálise em um debate sério com outros campos do saber e finalmente pensar no que há de científico ou não.

A psicanálise não seria digna do lugar da pesquisa e do avanço?

Falta aos psicanalistas uma atitude de pesquisador. Não se trata de necessariamente estudar. Precisamos de uma prática que envolve a pesquisa como parte de todo esse processo, exatamente porque é com a prática da pesquisa que podemos avançar o pensamento psicanalítico. Em um movimento como este, podemos nos valer de metodologias que possibilitem um recenseamento dos nossos conceitos, do que propõe nossa teoria, como avançamos em um debate com outras disciplinas, como criamos e aplicamos aquilo que dispõe o dispositivo psicanalítico.

Um método não pode ser um método morto, ele se atualiza em um tempo e um espaço que demandam uma territorialidade e uma certa diacronia referente a suas bases. Isso necessariamente é um problema nosso. Já podemos ir além de Freud, Lacan ou quem quer que seja. Agora se trata de avançar a partir do que está posto e ver o que nos serve. Se trata de movimentos de revolução e mudança paradigmática, tal como sugere Kuhn.

A urgência que temos diz respeito ao fato de que os psicanalistas não deveriam estar incomodados somente com o que pode ser entendido da teoria para aplicar na clínica, mas de ter um posicionamento crítico e além disso, que proponha e crie algo a partir de um movimento cientifico. Isso necessariamente diz respeito aos psicanalistas deixarem de ser meros repetidores de posição teórica x ou y, mas de sustentar um posicionamento que tenha rigor, que critique, que revise, que discuta com os pares, que coloque à prova em debates sérios e logicamente possíveis.

A proposta que defendo é a de que isso é um problema para os psicanalistas, mas principalmente para aqueles que estão na universidade, nos grupos de pesquisa independente, nas escolas/sociedades de psicanálise ou até mesmo aquele mais isolado que se diz clínico e se vale de um suposto um-a-um. Proponho que ponhamos a mão na massa e consigamos construir algo que vá para além de uma mera crítica ou de algo que tenha consequências puramente tecnicistas.

Fazer psicanálise tem muitos sentidos possíveis para o termo. Desde ser analisante, passando por ser clínico e chegando ao lugar de pesquisador. É necessário fazer a psicanálise para definirmos, mais adiante, o que vamos fazer dela. Não há disciplina que se sustente na história que não reveja suas próprias construções e a psicanálise não está, e nem deveria, isenta desse processo.

Se não partimos de um ponto, tendo o avanço como uma possibilidade, seremos eternamente tratados como somos tratados no referido livro: uma bobagem. E seria muita bobagem da nossa parte se continuamos no mesmo lugar, sempre partindo de pressupostos que fecham a discussão em uma circularidade de conceitos que podem ser mal trabalhados.

Então, entre tecnicismos e bobagens, sugiro a pesquisa, o avanço e o debate sério.


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