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A resistência é do analista: considerações a partir de uma definição lacaniana

A resistência como sendo do analista é uma questão que precisa ser debatida e desenvolvida na psicanálise lacaniana. A resistência do analista é uma ideia que demanda uma contextualização. Pois, assim como qualquer aforismo lacaniano, essa é uma definição para a resistência que carece de uma sustentação teórica que fundamente tal ideia, tanto no ensino de Lacan como nas produções que citam exaustivamente a letra desse autor.

Um autor quando diz algo, se vale de um conjunto de proposições que sustentam um raciocínio e fundamentam um pensamento através de deduções formuladas a partir de uma investigação específica. Um conceito ou determinadas definições para o mesmo, se valem da utilização de uma coerência no campo teórico no qual estamos debatendo.

Lacan diz muita coisa, o tempo todo e cada coisa não deve ser abordada de maneira isolada. Partimos não apenas da coerência, mas da coesão que implica inúmeras propostas estreadas pelo francês na psicanálise.

Quando propõe que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, constrói uma teoria do significante e sustenta com a linguística, a matemática, a lógica, antropologia estrutural e outros. Para dizer que não há relação sexual, precisou sustentar isso no campo das matemáticas, baseado na teoria dos conjuntos quantificadores e suas particularidades funcionais. Precisou passar por inúmeros autores e disciplinas para poder propor um estatuto científico à psicanálise e revolucionar a forma de pensarmos a clínica.

Mas o que quis dizer Lacan ao propor que a resistência é sempre do analista? O que isso quer dizer e qual o impacto no nosso trabalho enquanto psicanalistas?

Aqui pretendo argumentar que não há outra resistência na análise senão a do analista, seguindo o pensamento lacaniano e de como podemos pensar a noção de resistência dentro dessa definição. Portanto, estou de acordo com Lacan e tenho como objetivo sustentar esse ponto a partir de uma contextualização dessa proposta.

Essa concepção de resistência pode ser apontada no Escrito “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” de 1958, em que Lacan diz o seguinte:

[...] não há outra resistência à análise senão a do próprio analista (Lacan, 1958, p. 601).

O primeiro ponto a ser considerado, é questionar o que Lacan está querendo denominar resistência. Esse escrito é crucial para pensar a clínica, pois Lacan está estabelecendo algumas balizas que delimitam uma análise e de como a mesma pode ser direcionada a um fim específico. Inúmeros assuntos são abordados e todos eles têm o objetivo de fundamentar um certo norte para a condução de um tratamento psicanalítico.

No momento em que profere essa fala, Lacan está tratando do lugar da interpretação na práxis psicanalítica e de como essa práxis deve ser pensada pela lógica significante. Esse é um aspecto do texto que não deve ser ignorado em hipótese alguma.

É um momento dentre inúmeros em que Lacan está criticando os psicanalistas pós-freudianos e suas ideias acerca do ego e suas resistências e defesas. Seu contraponto é o de sugerir que a interpretação não se dê pela via do imaginário e que o trabalho analítico não se reduza a uma reeducação emocional. A resistência se refere a uma relação direta ao conceito de transferência, trabalhado por Lacan no seminário 11, intitulado de “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”.

Em continuidade à construção de resistência atrelada ao conceito de transferência, em sequência a sua fala sobre a resistência ser do analista, Lacan diz que

A transferência, nessa perspectiva, torna-se a segurança do analista, e a relação com o real, o terreno em que se decide o combate. A interpretação, adiada até a consolidação da transferência, fica desde então subordinada à redução desta (Lacan, 1958, p. 602).

Observa-se que há uma ligação direta entre resistência (do analista), interpretação e transferência enquanto conceitos.

Ao considerarmos o escrito “A direção do tratamento...”, a verdade é que não está claro o que Lacan quis dizer com a sua fala de que a resistência é sempre do analista. Para compreendermos do que se trata essa passagem, precisamos voltar a alguns anos antes no ensino de Lacan para situar essa máxima de forma mais assertiva.

Refiro-me ao ano de 1955, momento em que está sendo ditado o seminário 2 “O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise”. Nesse seminário podemos compreender a resistência como sendo do analista. A partir da lição de número 17 do referido seminário, temos alguns trechos que esclarecem essa questão. Lacan diz:

A resistência, no sentido de Widerstand, obstáculo, obstáculo a um esforço, não deve ser procurada em outro lugar a não ser em nós mesmos. Quem aplica a força provoca a resistência (Lacan, 1955, p. 285).

Aqui temos um detalhe que é o fato de que Lacan está se referindo a conceitos da física para definir a resistência, tendo o princípio da inércia como ponto de partida:

No sentido da inércia, não há em parte alguma, resistência (Lacan, 1955, p. 285).

O princípio da inércia é o fundamento da 1ª Lei de Newton, onde se entende que se a força é nula, um corpo permanece em repouso ou mantém-se em Movimento Retilíneo Uniforme (MRU). Para haver movimento ou alteração no movimento primário deve-se investir força em determinado corpo. É importante atermo-nos que manter a inércia não é sinônimo de estar parado, já que se pode manter o MRU. Se pensarmos isso no contexto de uma análise, manter a inércia, não quer dizer necessariamente que um caso está estagnado em um certo ponto.

A resistência é uma provável resposta e está em oposição à inércia, pois para resistir, há a necessidade de força, quebrando o princípio da inércia. Por isso, quem aplica a força provoca a resistência, pois pode ser uma consequência da quebra do princípio da inércia. Nesse caso, quem provoca isso é o analista, pois é quem realiza o enquadre analítico e pede que seu analisante fale.

Portanto, a resistência é do analista porque é ele quem a provoca:

A resistência, no sentido em que vocês entendem, a saber uma resistência que resiste, só resiste porque vocês a pressionam (Lacan, 1955, p. 308).

Na medida em que iniciamos uma análise e trabalhamos os conteúdos inerentes a esse processo, somos nós, enquanto analistas quem estamos aplicando força, podendo haver resistência como o que responde a isso.

Não apenas entendendo como aquele que provoca, mas Lacan também sugere outra maneira de pensar a resistência, deixando mais claro o que quer dizer com a resistência ser do analista. O que Lacan propõe é que criamos a resistência como uma abstração. Essa forma de abordar a resistência é uma novidade no campo da psicanálise e passa a ser entendida como uma criação que surge no modo em que construímos e direcionamos a clínica teoricamente, através das hipóteses que sustentam uma prática.

Vejamos:

Esta resistência é um ponto ideal abstrato. Vocês é que chamam isso de resistência (Lacan, 1955, p. 308).

Trata-se de uma forma de se orientar na lógica de condução de um caso:

A resistência é, propriamente falando, uma abstração que vocês colocam aí dentro para se orientarem (Lacan, 1955, p. 309).

A resistência existe porque nós, analistas, a criamos como um conceito e introduzimos isso na leitura que fazemos da clínica. Se em um determinado caso observamos que há uma resistência, é porque nós a criamos enquanto investimento de força sobre um corpo inerte e porque abstraímos um conteúdo do discurso e chamamos de resistência.

Trata-se de um fenômeno em que a nomeação se dá por parte do analista. Só há resistência se alguém a constrói em um campo teórico-conceitual e a insere no discurso referente à prática psicanalítica.

Assim percebemos que a resistência do analista se sustenta nessa dupla ideia. Uma sugere que forçamos e consequentemente há resistência e a outra perspectiva diz que inserimos tal conceito de modo abstrato.

Outro ponto de vista em que podemos abordar a resistência é entendê-la como um elemento inerente à cadeia significante e pode ser evidenciada na proposta de Lacan ao estabelecer a estrutura metonímica como fundamental para a cadeia significante. Não percamos de vista que no escrito supracitado, de 1958, Lacan já estabelecera uma teoria própria do significante e estava defendendo uma prática clínica dentro dessa lógica. No seminário 2, onde aborda a resistência pela via da inércia e da abstração, ainda não tinha uma teoria do significante, começando a ser abordada no seminário seguinte sobre “as psicoses”.

Para entendermos a resistência como uma característica referente à cadeia significante, é preciso recorrer aos fundamentos dessa criação lacaniana no campo da psicanálise. Observemos a seguinte fórmula:

Essa é a matematização proposta por Lacan para evidenciar a metonímia enquanto função da cadeia significante, compreendendo-a como um processo que se dá de significante a significante, sem haver uma substituição como na metáfora. A metonímia é uma organização da cadeia significante que vai manter a resistência à significação, o que é um ponto central dessa teorização, já que um significante não significa nada.

O que vai nos interessar, essencialmente, nessa fórmula é o sinal posto entre parênteses e o que isso vem representar para a estrutura metonímica. Nas palavras de Lacan:

O sinal –, colocado entre ( ), manifesta aqui a manutenção da barra –, que marca no primeiro algoritmo a irredutibilidade em que se constitui, nas relações do significante com o significado a resistência da significação (Lacan, 1957, p. 519).

O primeiro algoritmo o qual Lacan se refere é o algoritmo do significante que ele formaliza a partir de sua subversão do signo linguístico de Saussure:

Esse algoritmo especifica que o significante resiste ao significado, não havendo uma significação, um sentido posto a priori no que se refere a um determinado significante. A axiomática lacaniana estabelece que o significante não significa nada, pois só pode haver efeito de significação quando representa um sujeito para outro significante.

Já que não há um significado imanente e o significante está em uma relação independente do mesmo, há resistência por parte do significante e consequentemente da cadeia significante. Isso pôde ser evidenciado através da fórmula da metonímia ou no algoritmo que marca a virada teórica que se opõe ao signo linguístico em que significa algo para alguém.

A confusão que isso inspira está na ideia de que pelo fato de a cadeia significante resistir à significação, isso se refere a uma resistência do analisante. Esse é um equívoco comum, mas o significante não parte, a priori, do analisante. O que seria a cadeia significante senão uma abstração tomada pelo analista, da mesma forma que a resistência?

A princípio, quando pedimos que alguém fale o que lhe vem à cabeça, não temos nenhum significante. Palavras são faladas a partir do que chamamos de associação, o que se diferencia de um significante. O significante é resultado de uma operatória do analista.

Para Lacan (1960):

Para que não seja vã nossa caçada, a nós, analistas, convém reduzir tudo à função de corte no discurso, sendo o mais forte aquele que serve de barra entre o significante e o significado. Ali se surpreende o sujeito que nos interessa [...].

Esse corte da cadeia significante é único para verificar a estrutura do sujeito como descontinuidade no real (Lacan, 1960, p. 815).

Aqui, nesse trecho, temos explicitamente que só existe significante através de uma ação analítica que se dá em um corte, só havendo efeito significante se houver um sujeito a ser representado na relação com outros significantes.

Compreende-se que há uma ação arbitrária de denotar um elemento enquanto significante e sua demonstração com a produção de um sujeito. Isso evidencia que não é tudo que é falado em análise, se toma enquanto significante, mas tudo aquilo que tem esse efeito.

O conteúdo levado pelo paciente é pela via da palavra, da narrativa que se presentifica ao “associar livremente”. O que é compreendido nesse discurso como significante, é consequência da leitura analítica de um caso.

Assim, não há resistência do analisando senão quando nós a nomeamos, já que o significante resiste à significação e somos nós quem abstraímos esses elementos do discurso. A resistência faz parte do nosso trabalho na medida em que provocamos força na palavra que é transduzida como significante e o mesmo opera com essa característica.

Compreender que é o analista quem resiste, amplifica o entendimento do que isso quer dizer, pois, não se trata de a pessoa do analista resistir por antipatia ou não ter competência para atender a um caso, mas que isso foi provocado exatamente pelo fato de que há efeito analítico e denominamos resistência um evento inerente a uma análise.

Estamos lidando com o fato de que tomamos um elemento e formalizamos em um campo e nisso denotamos que há resistência, pois não temos inicialmente o valor de x, é como em uma equação, precisamos de uma operação para definir o valor da incógnita. Aqui o significante é vazio. O analista resiste à medida que convencionalmente articula o conceito de resistência no material de um caso.

Abordar essa problemática nesse sentido, retira a culpabilização que pode causar nos analistas, passando a compreenderem que a resistência é do analista, mas de forma contextualizada e com as devidas considerações teóricas. Dizer que o analista resiste sem especificar o que isso quer dizer, é perigoso e pode servir facilmente como elemento de controle e poder no campo da psicanálise.

Paradoxalmente, precisamos resistir para que uma análise aconteça e isso faz parte do ofício daquele que decide trabalhar com a lógica do significante e a mesma resiste enquanto abstraímos e causamos a força naquilo que está, ao menos por ora, inerte.


REFERÊNCIAS

Lacan, J. (1955). O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Lacan, J. (1956). O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

Lacan, J. (1957). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Lacan, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Lacan, J. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Lacan, J. (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.






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