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Da formalização matemática à sua função na psicanálise lacaniana: uma introdução

O ensino de Lacan, do início ao fim, é repleto de referências à formalização matemática investida pelo autor. Esse é um processo que se dá através de uma relação do psicanalista com alguns modelos formais que se desenvolvem a partir da modernidade e do desenvolvimento de novas perspectivas do pensamento que avançam no campo científico. São movimentos referentes à ciência que se enquadram necessariamente a uma possibilidade de renovação de determinadas vertentes.

Em 1975, no escrito “Talvez em Vincennes...”, Lacan estabelece algumas disciplinas científicas essenciais para o analista se debruçar em sua formação e apoiar-se a partir de suas formulações. Essas disciplinas são: linguística, lógica, topologia e antifilosofia. Outrora, em 1953, no clássico “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, além de abordar o lugar da antropologia estrutural, destaca a importância de pensar o formalismo de Boole enquanto referência para pensar o rigor em psicanálise.

Todas as disciplinas supracitadas partem de um modelo formal. A linguística fornece a estrutura do significante, enquanto a lógica demarca o funcionamento do real enquanto um impossível que sempre retorna ao mesmo lugar; a topologia garante um lugar justificado para pensar o espaço e a antifilosofia pensa outras categorias que além do ser. O ponto em comum dessas disciplinas é a possibilidade de garantirem uma estrutura. E uma das formas de pensar a estrutura para Lacan é através da matemática, sendo essa área exatamente aquela que vai introduzir no pensamento moderno, um rigor através da formação de suas leis. Isso é a essência do formalismo e de autores que desenvolvem teorias nesse campo. É deste ponto que partirei neste trabalho, com a tentativa de pensar a relação de Lacan com o formalismo e o lugar que esse movimento ocupa em sua teoria e clínica, levando em consideração uma diferença entre formalismo e formalização.

Partindo do pressuposto que Lacan desenvolve sua teorização da psicanálise a partir de modelos formais, inexoravelmente devemos pensar uma prática clínica lacaniana que se fundamenta através desse raciocínio, ou seja, no caminho de uma formalização. Abordar a formalização matemática do ensino de Lacan é, necessariamente, uma forma de fazer jus ao árduo trabalho do francês em estabelecer a psicanálise como disciplina científica, enquanto ciência conjectural (Lacan, 1966). Não obstante, é preciso que reconheçamos os limites que isso impõe ao psicanalista e de como precisamos pensá-los em um debate sério, científico e que proponha um avanço para as problemáticas apontadas.

Por isso, para falarmos de formalização matemática do ensino de Lacan, precisamos compreender o que isso quer dizer, quais os critérios, os autores e sua funcionalidade naquilo que diz respeito a uma prática psicanalítica. E aqui refiro-me à prática em sua modalidade clínica, mas também de transmissão. Em linhas gerais, precisamos ler Lacan – embora isso pareça óbvio, vale frisar para não esquecermos de tomar o autor em sua letra – e como todo bom pesquisador, ler sobre aquilo que compõe as bases do que está sendo discutido. Portanto, para tratar de formalização matemática, temos que ler sobre matemática – outra obviedade que se faz necessária.

Esse me parece um bom caminho para pensar essa questão de forma lógica, séria e rigorosa. Assim, podemos produzir algo de forma científica, em um debate argumentativo e bem fundamentado.

Para tanto, em uma leitura da obra de Lacan, é possível identificar alguns autores, que são tomados para tecer esse debate com as matemáticas, tais como: Boole, Gödel, Frege, Cantor e Hussell. Cada um desses foi tomado por Lacan à sua maneira, de acordo com aquilo que era do seu interesse:

  • Boole → Lógica matemática e formalização

  • Gödel → Teoremas da incompletude e impossibilidade

  • Frege → Teoria da gênese dos números

  • Cantor → Teoria dos conjuntos

  • Hussell → O paradoxo e os limites formais

Aqui, vou acrescentar Hilbert, um teórico que nunca foi citado por Lacan, exceto em uma nota de rodapé do seminário 16 (disponível apenas na versão francesa do Staferla) se referindo ao teorema de Gödel, mas que necessariamente contribui para o pensamento formal, já que foi um autor precursor do formalismo enquanto literatura e filosofia matemática. Da mesma forma, vários outros autores não são referidos aqui de forma arbitrária, já que aqui me interessa pensar o aspecto formal e do quão tais autores podem contribuir para a discussão.

Quando me refiro à matemática no plural é exatamente para podermos situar a matemática em um caráter multifacetado no que se refere ao ensino de Lacan, pois o mesmo se dedica a abordar inúmeros teóricos, de diversas vertentes da matemática, o que nos possibilita pensar em ‘matemáticas’.

Dentre as tantas matemáticas, a primeira que abordarei é a de Boole. Esse autor é um precursor da noção de formalização, já que o seu trabalho foi o de desenvolver uma relação entre lógica e matemática, de maneira que ambas fossem inseparáveis em seus fundamentos. Sendo assim, Boole desenvolve a ideia de que a matemática deve se fundamentar a partir de proposições lógicas, ou seja, premissa que definem um raciocínio específico.

Para Boole (1998) formalizar se refere à cominação de símbolos que se articulam em leis que fundamentam um raciocínio. Tais leis servem para delimitar logicamente aquilo que está sendo manipulado: “Não depende da interpretação dos símbolos que são empregados, mas somente das leis de sua combinação” (Boole, 1998).

Essa abordagem dos elementos define uma modalidade matemática de pensar os elementos que se apresentam em determinado contexto a partir de um raciocínio dedutivo. Para Mortari (2016):

[...] na matemática, para mostrar que uma proposição é uma lei (um teorema) não se recorre à experiência ou à observação, como em várias outras ciências. Na matemática - para colocar as coisas de um modo simples -, a verdade de uma lei é estabelecida por meio de uma demonstração dela, isto é, uma sequência argumentativa (dedutiva) mostrando que ela se segue logicamente de outras leis aceitas (ou já estabelecidas) (Mortari, 2016).

Desde então, podemos pensar na manipulação de conteúdos em um modelo formal, articulados à lógica, que propõe que isso se dê em uma demonstração argumentativa. Esse é o movimento das matemáticas modernas que tem a contribuição de Boole com uma outros autores como Peacock, Gregory, De Morgan e Hamilton.

As matemáticas desenvolvidas nesse período, mais especificamente o século 19, estavam implicadas em avançar em modelos formais que extrapolassem a lógica clássica e a matemática como ciência exclusiva de números. Concomitantemente à ideia de desenvolver novas perspectivas, temos a difusão das seguintes áreas: geometrias não-euclidianas, espaços n-dimensionais, álgebras não-comutativas, processos infinitos e estruturas não quantitativas. Influenciado e contribuindo com o estabelecimento dessas mudanças paradigmáticas, Boole se dedica a estudar, lógica, cálculo, equações diferenciais, teoria de invariantes e probabilidade (Sousa, 2005).

O programa de Boole estabelecia o uso da álgebra, raciocínio lógico e cálculo de raciocínio dedutivo. Seu trabalho se dá com a inovação de pensar a matemática de forma algébrica, em uma manipulação de letras, relacionadas com símbolos e suas respectivas proposições. Essa ideia possibilita que uma lei seja formulada a partir de premissas lógicas que se combinem e possam ser demonstradas em um cálculo, apresentando um teorema.

Isso se dá da seguinte forma:

Poderíamos justamente atribuí-lo como o caráter definitivo de um verdadeiro Cálculo, que é um método que repousa sobre o emprego de Símbolos, cujas leis de combinação são conhecidas e gerais, e cujos resultados admitem uma interpretação consistente (Boole, 1998).

A matemática de Boole adquire sua importância exatamente por possibilitar o estabelecimento de leis para o pensamento. É a isso que se refere quando se trata de formalização matemática.

Lacan (1954) descreve o que seria uma formalização matemática em concordância com aquilo que está posto no modelo formal de Boole:

Quando se fala de formalização matemática, trata-se de um conjunto de convenções a partir das quais vocês podem desenvolver toda uma série de consequências, de teoremas que se encadeiam, e estabelecem no interior de um conjunto certas relações de estrutura, propriamente falando, uma lei (Lacan, 1954, p. 53).

É assim que se sustenta uma lei. Se dá em um conjunto de premissas, de teoremas, que se organizam e não se contradizem entre si, podendo ser demonstrados matematicamente. No nosso cotidiano podemos pensar em pelo menos dois exemplos que estamos habituados a pensar: 1) teorema de Pitágoras: o quadrado da hipotenusa é o resultado da soma do quadrado dos catetos oposto e adjacente (a2 = b2 + c2); 2) 2ª lei de Newton: A mudança de movimento é proporcional à força motora imprimida e é produzida na direção de linha reta na qual aquela força é aplicada (Fr = m.a). Ambos são demonstrações que envolvem uma axiomática e uma fórmula estabelecida como suporte para tal operação.

Isso é lido por Lacan como uma maneira de estabelecer um rigor para tomar a psicanálise como ciência conjectural:

Vê-se por esse exemplo como a formalização matemática que inspirou a lógica de Boole, ou a teoria dos conjuntos, pode trazer à ciência da ação humana a estrutura do tempo intersubjetivo da qual a conjectura psicanalítica necessita para se garantir em seu rigor (Lacan, 1953, p. 288)

É um movimento que muito interessa a Lacan, pois estabelece um modelo teórico que se dá necessariamente em um modelo formal, onde podemos encontrar esse conjunto de regras constituídas em suas proposições, suas fórmulas e suas demonstrações.

O debate que Lacan estabelece com o modelo formal de Boole se dá a partir da necessidade de configurar uma prática psicanalítica que se deduz em uma articulação lógico-formal. Esse uso lógico tem o objetivo de formalizar o discurso:

[...] formalizar esse discurso consiste em certificar-se de que ele se sustente sozinho, mesmo que o matemático evapore por completo. Isso implica a construção de uma linguagem que é, muito precisamente, aquela que chamamos de lógica matemática, e que melhor seria chamar de prática da lógica, ou prática lógica sobre o campo matemático (Lacan, 1969, p. 94).

Essa proposta nos interessa para delimitar a psicanálise lacaniana como um método hipotético-dedutivo, que se vale dessa organização lógica para definir as balizas que orienta sua prática. Esse pensamento é abordado por Eidelsztein (2021) onde aponta a necessidade do trabalho com a topologia e das definições de categorias que digam respeito a um real como impossível lógico. A concepção de real é imprescindível para essa discussão.

A contribuição de Boole para a psicanálise de Lacan está diretamente relacionada com a possibilidade de estabelecer critérios lógicos para o que está sendo formalizado.

No entanto, mesmo que possamos compreender Boole como um autor necessário para a construção dessa ideia em Lacan, precisamos compreender uma diferença importante entre formalização e formalismo. Formalização se relaciona com dar uma forma matemática (ou qualquer outra, como no caso da antropologia estrutural) a elementos específicos. Enquanto isso, o formalismo é uma vertente matemática, uma literatura que se estabelece e tem o seu apogeu com Hilbert. O formalismo é uma dentre várias possibilidades de formalização.

Somente com essas diferenças estabelecidas podemos pensar no que se refere o processo formal inerente à psicanálise lacaniana, pois sua formalização se dá com o uso de inúmeras disciplinas com uma leitura estruturalista. Já o formalismo de Lacan, está necessariamente relacionado com a criação de fórmulas, matemas e axiomas para fixar seus conceitos a nível de transmissão e em sua clínica. Se não diferenciamos as duas coisas, podemos facilmente confundir as duas coisas e cometermos equívocos tanto quando criticamos a ideia de formalização quanto a possibilidade de considerar a sua importância para a psicanálise.

Conforme pontuado anteriormente, Hilbert foi o principal representante do formalismo enquanto literatura e corrente matemática, mas um autor que não foi trabalhado por Lacan diante das várias matemáticas que sustentam seu ensino e dão suporte para sua formalização. No entanto, faz-se necessário conhecermos o formalismo de Hilbert e compreender do que se trata e como isso se desenvolve na história da matemática a partir da publicação dos teoremas de Gödel. Em Lacan encontramos muitas referências sobre Gödel e por isso precisamos compreender ao nível teórico as diferenças entre esses autores para pode relacionar com o que Lacan propõe em seu ensino articulado aos teoremas de Gödel.

A teoria de Hilbert é um marco para a matemática moderna, pois parte do mesmo movimento de relacionar lógica e matemática e avançar cientificamente com outros modelos do pensamento além dos modelos aristotélicos utilizados desde a antiguidade. Por ser o criador e destacado autor do formalismo, Hilbert estreia na matemática uma literatura e um método específico, já que o formalismo se dá como uma corrente matemática.

No formalismo é onde encontramos veementemente o conhecido método axiomático, que não necessariamente surgiu com formalismo e que podemos encontrá-lo desde a antiguidade grega em Euclides. No entanto, o método axiomático trabalhado por Hilbert tem uma qualidade específica que é a utilização de proposições lógicas que não podem ser contradizer em sua aplicabilidade. É o que diferencia do intuicionismo posto em Euclides, por exemplo.

Conforme apontado por Costa (2008), o formalismo garante seu lugar na matemática por conta do seu uso do método axiomático:

O formalismo nasceu das vitórias alcançadas pelo chamado método axiomático. Para se estudar uma teoria pelo método axiomático, procede-se assim: escolhe-se certo número de noções e de proposições primitivas, suficientes para sobre elas edificar a teoria, aceitando outras ideias ou outras proposições; obtém-se, dessa maneira, uma axiomática material da teoria dada; deixam-se de lado os significados intuitivos dos conceitos primitivos, considerando-os como termos caracterizados implicitamente pelas proposições primitivas. Procuram-se, então, as consequências do sistema obtido, sem preocupação com a natureza ou com o significado inicial desses termos ou das relações entre eles existentes. Estrutura-se, assim, o que se denomina uma axiomática abstrata (Costa, 2008, p. 49).

Precisamos abordar a axiomática sempre em diferenciação, pois encontramos na matemática as axiomáticas primitivas, que não interessa se são evidentes ou não, e as axiomáticas demonstradas que ocorrem com raciocínios logicamente corretos. Essas leituras da axiomática podem ser obtidas em Euclides e Hilbert respectivamente.

Portanto, o formalismo trabalha com a noção de demonstrar sua axiomática e tem essa prática como seu fim. “O formalismo, em poucas palavras, deseja transformar o método axiomático, de técnica que é, na essência mesma da matemática” (Costa, 2008, p. 51).

O formalismo de Hilbert propões que haja três elementos básicos para sua aplicabilidade:

  1. Axiomatização: Proposições lógicas;

  2. Formalização: Utilização de fórmulas, a partir de símbolos com regras bem definidas;

  3. Demonstração: Operar de forma em que as proposições postas na axiomatização não cheguem a uma contradição em sua aplicabilidade;

Essas ideias básicas para o formalismo se dão com o uso de “[...] um sistema de símbolos de uma linguagem explicitamente dada, manipulados segundo regras (de formação e de transformação) também explicitamente dadas” (Silva, 2007, p. 184).

Para Nagel e Newman (2015):

O primeiro passo na construção de uma obra absoluta, tal como Hilbert concebeu a questão, reside na completa formalização de um sistema dedutivo. Isto implica drenar as expressões que ocorrem no interior do sistema de todo significado: é preciso considerá-la simplesmente como signos vazios. Como se deve combinar e manipular tais signos é exposto em um conjunto de regras precisamente estabelecidas (Nagel e Newman, 2015, p. 31-32).

Em Lacan podemos encontrar um exemplo de um processo de formalização nos moldes de Hilbert, através de sua teoria do significante. Vejamos:


1. Axiomática:

a. O significante não significa nada;

b. O significante é o que representa um sujeito para outro significante;

c. São elementos diferenciais;

d. Se organizam em leis de uma ordem fechada;

e. Suas estruturas fundamentais são metáfora e metonímia;


2. Formalização:

3. Demonstração

a. Quando aplicamos tais elementos epistemológica ou clinicamente não contradizemos os postulados da axiomática.


Esse conjunto de elementos formais da teoria do significante podem, por exemplo, se estenderem à topologia enquanto ramo da matemática que se estabelece em um modelo formal. Partindo do exemplo colocado acima, acerca da teoria do significante, poderíamos ampliar a demonstração formalista à topologia do toro. Para Amster (2010) para compor uma equação que constitua as coordenadas espaciais de um toro, precisamos nos pautar da seguinte fórmula:



Uma axiomática para a aplicabilidade da fórmula a partir da propriedade de um espaço, precisamos levar em consideração a seguinte condição:



Ou seja, a deve ser maior que r, que necessariamente deve ser maior que 0.

Ao se valer desta fórmula temos uma superfície tórica, tal com conhecemos:



Percebe-se que há uma arbitrariedade referente à aplicabilidade desta equação, fazendo com que haja uma proposição base para sua utilização de maneira topológica. O mesmo pode se aplicar a várias outras superfícies topológicas abordadas por Lacan.

O que intento abordar aqui é que a topologia, tal como vemos comumente nos textos lacanianos, também faz parte de um modelo formal, em que tem uma aplicabilidade demonstrativa, derivando de conjuntos de postulados e fórmulas que se aplicam em determinado contexto. Um exemplo corriqueiro disso é o manuseio das métricas topológicas, que demandam necessariamente um cálculo que se sustenta em fórmulas e proposições pré-estabelecidas (Loibel, 2007).

Esse processo de pensar em um formalismo de conceitos lacanianos podem se estender para inúmeros outros, construindo uma organização lógica, formal e demonstrativa, levando em consideração o seu contexto de aplicabilidade.

Mas por que Lacan não trabalha a teoria de Hilbert, tendo em vista que o modelo axiomático serve à sua teoria?

Na hipótese que sustento neste escrito, aposto em duas ideias básicas: 1) Gödel refuta a teoria de Hilbert; 2) Formalizar não depende do formalismo enquanto filosofia matemática.

Primeiro que Gödel apontou em sua tese que refuta o método de Hilbert, dois teoremas que fragilizaram o modelo do formalismo. Hilbert tinha o interesse de formalizar toda a matemática a partir do método axiomático, entendendo que essa metodologia pode se estender às diversas ramificações da disciplina matemática. No entanto, em 1931, Gödel publica seus teoremas e discorre sobre a incompletude e a impossibilidade de formalizar toda a matemática a partir do método axiomático.

Para Costa (2008):

A posição formalista, depois das indagações de Gödel, tornou-se pouco segura: nada pode impedir que o matemático formalista estude os seus sistemas simbólicos, mas também nada nos garante que ele não encontre, de vez em quando, contradições em suas transformações simbólicas (Costa, 2008, p. 61).

Evidencia-se um problema referente ao método axiomático e sua aplicabilidade nem sempre se mostraria eficaz, já que suas premissas/proposições poderiam entrar em contradição, impossibilitando que tal lei/teorema pudesse ser demonstrada. Tal construção será apontada com mais detalhes adiante.

Em segundo lugar, a ideia de formalização não depende do formalismo pelo fato de que Lacan está interessado na possibilidade de demonstrar sua teoria através de uma função do escrito. Para o autor, a possibilidade de manusear símbolos e uma axiomática se dá com a possibilidade de sustentar um raciocínio. É a essência dos matemas lacanianos e que o mesmo propõe que está desde Euclides:

[...] a própria intuição do espaço euclidiano deve alguma coisa ao escrito.

Por outro lado, o que é chamado em matemática de redução lógica da operação matemática não prescinde dela, não pode ter outro suporte senão a manipulação de letras pequenas ou grandes, de lotes alfabéticos diversos, ou seja, de letras gregas ou letras germânicas, vários lotes alfabéticos. Para constatá-lo, basta acompanhar a história. Toda manipulação com que a redução logística avança no raciocínio matemático exige esse apoio (Lacan, 1971, p. 94).

Para o autor, temos uma função do que em matemática denomina-se álgebra. Basta que haja uma escrita formal para se referir a esses elementos. Em “O aturdito” ele aponta que “Do não-ensinável criei um matema por assegurá-lo pela fixão da opinião verdadeira [...]” (Lacan, 1972, p. 484). Esse ponto é trabalhado por Cassin (2017), compreendendo o matema como “[...] uma proposição transmissível marcada por sua sintaxe a mais simples possível e por sua recorrência” (Cassin, 2017, p. 40). A autora também propõe que

O destino normal dos matemas, dos quais não se sabe o que querem dizer, é precisar da linguagem para se transmitir [...]. Por que a formalização matemática, a única a se transmitir integralmente, seria (ainda) nosso objetivo, nosso ideal (Cassin, 2017, p. 44).

A matemática como transmissão integral diz respeito à própria etimologia da palavra, que se refere como uma totalidade daquilo que é ensinado (Sánchez, 2016). Por isso, para Lacan (1971, p. 26) “[...] não há ensino senão matemático, o resto é brincadeira”.

Lacan (1966) entende que ainda que o formalismo tenha seus limites, conforme pontua em seu escrito “A ciência e a verdade” com seu intuito se suturar o sujeito, não deixa de lado a importância e a necessidade da formalização matemática em psicanálise: “Formalização matemática... que é nosso objetivo, nosso ideal - por quê? - porque só ela é matemática, ou seja, capaz de ser transmitida em sua totalidade ... a formalização matemática é escrita [...]” (Lacan, 1973, p. 105).

Se trata da possibilidade de sustentar uma escrita. De formalizar aquilo que pode ser transmitido a partir de nosso escopo teórico-conceitual e da clínica. Lacan está advertido dos problemas que envolve uma formalização, já que o mesmo se referencia em Gödel, e assim precisamos entender tal relação entre os autores.

Inicialmente, podemos tomar o debate de Lacan com Gödel a partir da problemática levantada acerca da concepção lacaniana de sujeito, compreendido como sujeito da ciência, o sujeito cartesiano. Em determinado momento, Lacan (1966) faz uma relação da lógica moderna como uma tentativa de suturar o sujeito. Sabemos que a lógica moderna é uma lógica matematizada, ou seja, formalizada e que pelo menos com o formalismo foi lida como algo a se referir ao todo. Com essa ideia, não se admite a impossibilidade, já que matematicamente tudo pode ser representado, tudo pode ser formalizado.

Advertido dessa problemática, Lacan se depara com o que conhecemos como os teoremas de Gödel. Tais teoremas, conforme citado anteriormente, foram prejudiciais e relativamente destrutivos para o programa de Hilbert, que tinha como intuito a formalização do todo. Nessa perspectiva, não se pode pensar em sujeito dividido, o próprio sujeito lacaniano.

Vejamos:

Indicaremos mais adiante como se situa a lógica moderna [...]. Ela é, incontestavelmente, a consequência estritamente determinada de uma tentativa, como vimos o ano passado, de suturar o sujeito da ciência, e o último teorema de Gödel mostra que ela fracassa nisso (Lacan, 1966, p. 17).

Quando se refere ao ano anterior, trata-se do seminário 12, intitulado de “problemas cruciais para a psicanálise” em que discorre, dentre vários temas, sobre a questão do sujeito da ciência.

Aqui, vemos que Lacan está advertido que uma formalização matemática tem os seus limites. Isso é evidente para os próprios matemáticos. Isso é evidente para o próprio Lacan, que se refere a Gödel e se refere a Hussell, dois autores fundamentais para pensar em limites referentes ao formalismo e à formalização respectivamente. Parece necessário que seja evidente aos psicanalistas que se posicionam de maneira antiformalismo ou antiformalização. É algo que Lacan estava ciente e sustenta do início ao fim do seu ensino.

Sigamos no debate acerca dos teoremas de Gödel. Os dois teoremas de Gödel apontam o seguinte:


1. Toda axiomática consistente da aritmética é incompleta.


Para Costa (2008, p. 56) “Existem proposições aritméticas tais que nem elas, nem suas negações, são demonstráveis na axiomática da aritmética que se adota”. Ou seja, o primeiro axioma aponta que a aritmética formal é incompleta (Silva, 2007).

Em linhas gerais, compreende-se que alguns axiomas não são demonstráveis, logo isso falha na possibilidade de sustentar o método axiomático quando se refere à aritmética. Sendo assim, o formalismo de Hilbert não pode ser um método universal de formalização desse campo da matemática.

Passemos ao segundo teorema:


2. A consistência de qualquer axiomática consistente da aritmética não pode ser demonstrada nessa axiomática.


Ou seja, “Gödel mostrava que a demonstração da consistência da aritmética formal era impossível por métodos que pudessem ser formalizados na própria aritmética formal” (Silva, 2007, p. 205).

Nesse sentido, a própria axiomática da aritmética não pode demonstrar a si mesma. Isso é impossível, é um impasse na formalização. Reparem que os dois teoremas se complementam, referindo-se à incompletude e impossibilidade.

As duas ideias, de incompletude de impossibilidade, muito interessam a Lacan. A primeira diz respeito ao que sustenta como não-todo em seu debate com a lógica e teoria dos conjuntos para sustentar a impossibilidade da relação sexual, assim como os conceitos de saber e verdade. O paradoxo de Hussell entra aí como outra leitura da matemática para sustentar uma teorização lacaniana. A segunda se refere à própria definição de real em Lacan, um impossível, um impasse da formalização e que se afirma nos impasses da lógica.

Algo a ser pensado com cautela, ainda me referindo aos teoremas de Gödel, é que o matemático refuta a axiomática do programa de Hilbert no que diz respeito à aritmética. Gödel não despreza o método axiomático, pois sustenta sua teoria exatamente nesse modelo. Seus teoremas são conjuntos de axiomas, são matematicamente formalizados e demonstrados em sua aplicabilidade.

Lacan compreende essa questão e estabelece seu problema de pesquisa no que se refere à sutura do sujeito, à matematização do todo e universalizar determinado método. O psicanalista se refere também a Boole, a Frege, Cantor e outros que sustentam uma formalização de determinadas áreas da matemática e que também foram refutados em suas teorizações. A preocupação de Lacan estava em outro lugar e não em desprezar todo o formalismo e renunciar a uma formalização da psicanálise.

Os teoremas de Gödel podem serem perfeitamente utilizados por qualquer um que despreza a formalização matemática de Lacan, mas que saibam que usam de má-fé. Seria usar Gödel de má-fé, de forma mesquinha, em prol de um discurso raso e muito mal articulado.

Formalizar é um processo de reduzir um material. Isso ocorre em absolutamente todas as disciplinas que estão em um campo científico. O próprio Lacan reconhece tal necessidade:

Redução do material quer dizer que a lógica começa na data precisa da história em que alguns elementos da linguagem, tidos como funcionando em sua sintaxe natural, são substituídos por uma simples letra por alguém que entende do riscado. E isso inaugura a lógica. É a partir do momento em que vocês introduzem um A e um B no se isto, logo aquilo que a lógica começa. É somente a partir daí que vocês podem formular, sobre o uso desse A e desse B, um certo número de axiomas e de leis dedutivas que merecerão o título de articulações metalinguísticas, ou, se preferirem, paralinguísticas (Lacan, 1968, p. 34).

Advertido de que isso pode se transformar em uma ideia de que há metalinguagem, Lacan aponta exatamente os limites formais utilizando Gödel como referência. Pois não há metalinguagem, mas há formalização.

O que fazemos na aplicabilidade da psicanálise senão utilizar de seus postulados teórico-conceituais, que envolve sua formalização matemática, e relacionar com aquilo que aparece como conteúdo por parte de um analisante?

Ideias de que trabalhamos puramente com o conteúdo são falaciosas. Abordar a clínica como soberania da experiência tem nome e em epistemologia se chama “empirismo inglês”. O programa de Lacan não parece seguir esse caminho. Nem puramente conteudista, tampouco empirista.

Uma dicotomia entre forma e conteúdo é um debate raso, pois não são exclusivos e nem poderiam ser. Qualquer um que se dedica a buscar a função de uma fórmula em matemática sabe que uma fórmula é vazia e que seus conteúdos são maneiras de manipulação. Assim como propor o conteúdo sem formalizar é admitir que a psicanálise realmente não tem nada de científica e que pode ser perfeitamente manuseada sem seus conceitos, matemas, topologias, etc.

Porventura, podemos cair no debate de que a psicanálise insiste em encaixar o conteúdo dos casos nos matemas. Basta ir a qualquer livro de metodologia científica que vemos que um método hipotético-dedutivo precisa de uma hipótese a priori para ser confirmada ou refutada. É o que diferencia de um método indutivo. Os matemas seguem essa lógica. Só são aplicados se correspondem ao que aparece como conteúdo.

Fazemos isso cotidianamente. Formalizamos todo o tempo. Se falamos que somos psicanalistas, se falamos de topologia, se diagnosticamos uma estrutura clínica e assim sucessivamente. Podemos tentar rebater com linguística e veremos que a mesma tem a sua formalização específica. O mesmo ocorre com antropologia estrutural.

Podemos levantar a ideia de que formalizar deixa de lado os aspectos políticos do caso e isso não diz muita coisa. Há a necessidade de uma argumentação plausível que aponte caminhos para pensarmos, por exemplo, que formalizar deixa de lado que negros no Brasil sofrem racismo. São variáveis completamente diferentes. A primeira é uma aparelhagem técnica e a segunda é uma realidade estrutural do país e estatisticamente comprovada. Qual critério se utilizaria para apontá-las como antagônicas?

É preciso um debate sério, bem argumentado e que sustente um posicionamento que apresente soluções. A matemática não vai salvar o mundo, digo isso em concordância com um colega que há pouco publicou isso em suas redes sociais, mas deixá-la de lado quando se trata de psicanálise lacaniana, principalmente quando se trata de pensar a formalização, é, cometendo um caetanismo: burrice.

A proposta então é de apontar algumas vertentes do pensamento matemático, sua abordagem na teoria da Lacan e sua função, conforme o título deste trabalho. Assim, podemos pensar nos problemas, nos limites e sempre apontar soluções para que não caiamos em um criticismo raso que não aponta um projeto que dê conta de sanar tais questões.


Referências


  1. Amster, P. (2010). Apuntes matemáticos para ler a Lacan 1: topologia. Buenos Aires: Letra Viva.

  2. Boole, G. (1998). The Mathematical analysis of logic. Ebook. Amazon.

  3. Cassin, B. (2017). Jacques, o sofista: Lacan, logos e psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

  4. Costa, N. C. A. (2008). Introdução aos fundamentos da matemática. São Paulo: Hucitec.

  5. Eidelsztein, A. (2021). Debate sobre a formalização do discurso e a clínica psicanalítica. O rei está nu, n.1, v.1. Disponível em: <https://oreiestanu.com/wp-content/uploads/2021/10/Debate-sobre-a-formalizacao-do-discurso-e-a-clinica-psicanalitica-ALFREDO-EIDELSZTEIN.pdf>. Acesso em 01 set 2022.

  6. Lacan, J. (1953). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

  7. Lacan, J. (1954). O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

  8. Lacan, J. (1965). O seminário, livro 12: os problemas cruciais da psicanálise. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2022.

  9. Lacan, J. (1966). A ciência e a verdade. In: O seminário, livro 13: o objeto da psicanálise. São Paulo: Fórum do Campo Lacaniano, 2018.

  10. Lacan, J. (1968/1969). O seminário, livro 16: de um outro ao Outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

  11. Lacan, J. (1971). O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

  12. Lacan, J. (1971). O seminário, livro 19: ...ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

  13. Lacan, J. (1972). O aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

  14. Lacan, J. (1973). Le semináire, livre 20: Encore. Inédito. Disponível em: <http://staferla.free.fr/S20/S20%20ENCORE.pdf>. Acesso em 01 set 2022.

  15. Lacan, J. (1975). Talvez em Vincennes. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

  16. Loibel, G. F. (2007). Introdução à topologia. São Paulo: Editora Unesp.

  17. Mortari, C. (2016). Introdução à lógica. São Paulo: Editora Unesp.

  18. Nagel, E; Newman, J. R. (2015). A prova de Gödel. São Paulo: Perspectiva.

  19. Sánchez, F. S. (2016). Lacan con las matemáticas. Buenos Aires: Letra Viva.

  20. Silva, J. J. (2007). Filosofias da matemática. São Paulo: Editora Unesp.

  21. Sousa, G. C. (2005). Uma reavaliação do pensamento lógico de George Boole à luz da história da matemática. Dissertação. UFRN.








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