top of page
Buscar
  • Foto do escritorFauzy Araujo

Um texto não é censurável

Um leitor pode facilmente se desviar do próprio ato intelectual, pensando que está censurando a um texto, a uma obra escrita por um autor. Pois, em realidade, um texto não deve ser censurado.


Algumas ideias, escritas em determinado contexto, vão apresentar algo do tempo, da cultura, da forma de pensar politicamente, daquele que escreve. O escrito é um documento histórico e muito do que sabemos da nossa, foi a partir do que escreveram, do que foi materializado por alguém em forma de texto. Um material escrito também pode ser um atestado, um testamento, uma ressonância.


Na minha área de pesquisa e trabalho, a psicanálise, pode se passar com Freud e algumas de suas teses que são abertamente problemáticas e que reproduz certas violências consagradas historicamente, enquanto são disfarçadas de análise. Sabemos do teor eurocêntrico, machista, homofóbico e universalista do projeto teórico freudiano. Mas como a psicanálise poderia ter avançado, se não tivéssemos lido a Freud e um conjunto de outros autores para reformular e entender que muitos dos textos teóricos, tinham suas falhas e necessitavam da devida reescrita? Não é possível esse movimento sem ler o texto e se desfazer de suas anomalias.


Mas isso não se refere somente ao campo teórico, mas também à literatura. Atualmente, temos dois exemplos comuns: Monteiro Lobato na literatura brasileira e J.K. Rowling com a saga Harry Potter. Parecem diametralmente opostos, mas as lógicas são similares. Eu poderia abordar vários, mas me atenho aos dois supracitados.


Considerando o texto como a organização escrita de um pensamento, mediante um aglomerado de palavras que produzem algum sentido, não devemos deixar de lê-lo.


Se Monteiro Lobato era abertamente racista em sua obra, temos mais é que ler para poder historicizar a literatura de seu tempo e ver o quão o racismo pode ser tomado como um discurso comum e que, sem criticidade, podemos reproduzir os mesmos ditos que se apresentam em determinada obra. Lendo com os olhos atuais é outra ótica, já saímos do referencial do autor. Ao dizer “é um autor racista”, já é uma elaboração referente ao escrito. É algo a posteriori da escrita mesma do autor.


Há uma ideia que me referencio em Achille Mbembe, filósofo camaronês, sobre as estátuas de colonizadores. Para o filósofo, não devemos destruir as estátuas coloniais, pelo contrário, para que não caiamos em uma amnésia histórica, devemos manter as estátuas intactas exatamente para evidenciarmos que na nossa história, fomos colonizados e os branco-europeu-hétero-cis-cristão foi o modelo a ser homenageado publicamente, ao contrário de muitos heróis negros e indígenas. Haveria de criar bons museus, com excelentes curadorias e estratégias de reparação histórica, incluindo a educação. Essa mesma lógica, serve para as produções textuais de um autor.


Por isso, se evidenciamos que há um elemento de determinado tipo violência na obra de um autor, seus livros devem estar nas estantes de uma boa biblioteca e não em uma fogueira. Pois queimando, apagamos o rastro daquilo que historicamente formou determinado pensamento e aderimos à amnésia. Sabemos que o esquecimento é exatamente o que faz os ideais nazistas, fascistas e autoritários em geral, ressurgirem a cada tempo, como mais tecnologias e sofisticadamente disfarçado de valores antagônicos a um modelo minimamente democrático. A censura de textos é recorrente nas notícias que temos de governos autoritários, que são movimentos anti-intelectuais. Assim como as estátuas em homenagem aos colonizadores, ditadores e outros não devem ser exibidas nas praças, os textos também podem seguir um rumo parecido: o arquivo, mas à sua ode. Não arquivar como forma de esconder, mas como manutenção.


Outro aspecto dessa discussão, são as abertas colocações transfóbicas de J. K. Rowling, autora da saga Harry Potter. E alguns movimentos foram no caminho de boicotar a saga e muita gente que cresceu no universo de Hogwarts, se viu abandonada de sua referência fantástica. Como se um autor fosse dono de seu personagem e de seu próprio texto.


O que quero dizer?


É que seguindo a Barthes, na medida em que um autor põe um texto no mundo, ele deixa de ser sua propriedade, pelo simples fato de que a operação de leitura é o que possibilita o sentido de um texto. O leitor participa da construção do texto. Nesse aspecto, um autor escreve um texto, mas seu sentido e sua estrutura representativa é do leitor. Quem lê e se envolve com escrito, é quem passa a ser quase que um acionista da obra, pois isso vai movimentar algo da própria história daquele que lê. Além de que um leitor é feito para trair o texto e consequentemente aquele que escreveu.


Portanto, Harry é propriedade daquele que se envolve na história. Seja no aspecto fantástico ou para odiar a história. Mas que seja lido. O incomodo causado por um texto só pode realmente ser considerado quando o lemos e às vezes, necessitamos tentar várias vezes, até que cheguemos a algum veredito. Toda a construção da história, deixou de ser única e exclusivamente de Rowling, a partir do momento em que o escrito foi posto no mundo e marcou diversas gerações.


Tal ideia, serve também para pensar nas limitações dos movimentos sociais, já que as declarações dessa autora são baseadas em certas vertentes do feminismo. E por acaso uma mulher trans não é uma mulher?


Aqui não devemos separar o autor da obra, porque é impossível. O que ocorre é exatamente juntar o autor com a obra e ver que não devemos nenhuma reverência ao autor, mas sim ao texto, inclusive para traí-lo. Em um sentido lacaniano da coisa, não existe propriedade intelectual – o que não quer dizer que não haja plágio –, mas no sentido do que tento propor aqui, o autor perde seu direito referente ao texto no exato momento em que publica. O que vem depois é resultado de quem lê.


Se querem boicotar, que seja a industrialização literária que propõe, de forma alienante, o consumo de produtos. Do livro como forma de falsa intelectualidade. Das vitrines que sustentam lançamentos um tanto equivocados. Podemos, inclusive, não financiar, deixar de manter o autor e seus direitos.


Mas o boicote não é do texto. Se deixamos de ler, caímos em uma argumentação anti-leitura, o que é uma grande falha intelectual.


Afinal, só deveríamos ler autores que concordamos? Uma leitura serve exatamente para podermos descentralizar o pensamento, as ideias. Então a discordância do texto e do autor, deve fazer parte desses tensionamentos.


A leitura do antagônico é o movimento necessário para a leitura fluir. Encontrar os desacertos, os problemas, as falhas literárias e teóricas, os preconceitos do autor e as violências que o mesmo reproduz. Nenhum debate, conforme pensa Jacques Rancière, necessariamente deve chegar em um ponto de síntese. Ao inverso, é preciso manter a tensão, a discordância, o incômodo. Caso contrário, entramos em uma endogamia intelectual e literária, que não permite a circulação do embate, que é próprio do ato de ler.


Que façamos museus de textos! Que os leitores atuais e os do futuro, possam ver que em algum momento da história, livros de Olavo de Carvalho foram vendidos nas seções de filosofia das livrarias. Que as leituras sobre psicologia e psicanálise foram substituídas pelos coachs, os grandes catequistas do neoliberalismo. Que fascistas foram alvo de grandes biografias, vendidas mais que água, como os casos de Bolsonaro e Milei, isso para citar a América Latina dos dias atuais. Que os atuais-futuros leitores possam se deparar e ler essas obras, com a devida atenção e pensamento crítico necessário e evidenciar o perigo de um texto.


Além disso, um texto é anacrônico, ele diz do contemporâneo de um escritor, mas quando é lido em outro tempo, ele pode ser reescrito, reformulado e subvertido por aquele que lê. O material escrito é, ao mesmo tempo, passado, presente e futuro e é a evidência, sob a forma de letra, da redução de um pensamento.

Então, além dos museus e bibliotecas, que venham novos autores! E também seus bons textos.

34 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page